Capítulo I

Um Grande Amigo Desconhecido

Por Marcelo Miguel

Não houve velório, pois não havia ninguém para velar seu corpo. Não havia flores e não havia velas. De longe era possível apenas ouvir o rangido estridente das rodas sem lubrificação do carrinho de mão que transportava o caixão empurrado por apenas um funcionário do cemitério. Também se ouvia os poucos passos estalando nas ruas de areia e terra do lugar. O enterro, foi acompanhado por apenas duas pessoas no mais absoluto silêncio. E no mais absoluto silêncio sua lápide assim fora fechada.

 

Nos primeiros dias do ano de 1979, Vladimir Kozák fora encontrado desacordado em sua casa na cidade de Curitiba, no Brasil, local onde morava sozinho, fazendo justamente o que mais gostava e amava. Ele estava pintando um quadro. Retratando a imagem de um de seus muitos amigos indígenas. Mas ele faleceu antes de concluir a obra e antes de poder ser atendido pelo serviço médico local. Faleceu antes mesmo de chegar ao hospital. Fora encontrado sem consciência caído sobre a pintura que não pode terminar. Deitado de bruços, abraçando o quadro ainda com a tinta fresca. Um simbólico abraço de despedida nos amigos indígenas do Brasil.

 

E assim, partiu Vladimir Kozák, dia 03 de janeiro de 1979, pouco mais de três meses antes de completar 82 anos de idade. Cidadão naturalizado brasileiro ainda na década de 1950, nascido em abril de 1897 na região da Morávia, mais precisamente na pequena cidade de Bystřice Pod Hostýnem, na época, região pertencente ao Império Austro-húngaro, mas atualmente localizada na República Tcheca ou Tchéquia, denominação recém-adotada.

 

Ao longo de sua vida, percorreu florestas e os recantos mais longínquos do Brasil, pintando, filmando e fotografando costumes e o cotidiano de nações e povos que muitas pessoas nem sequer sonharam existir. Registrando momentos importantes da história e da cultura popular brasileira. Um engenheiro. Um fotógrafo. Um artista. Um documentarista. Um cineasta. Um dos primeiros ambientalistas a percorrer essas terras. Um homem que viveu os horrores da Primeira Grande Guerra Mundial defendendo o exército do imperador, um homem que sobreviveu a uma pandemia de gripe espanhola e que conheceu e conviveu com diversos povos e nações indígenas no Brasil.

 

Enterrado na cidade de Curitiba, capital do Estado do Paraná, região sul do Brasil, Vladimir Kozák viveu a maior parte de sua vida onde hoje está seu túmulo. Esta mesma cidade de Curitiba, que ele ajudou a desenvolver e a iluminar trazendo energia elétrica na década de 1930, cidade que ele conheceu com pouco mais de 100 mil habitantes, e que nos dias de hoje abriga quase 2 milhões de habitantes. Cidade que lhe deu como gesto de homenagem e reverencia a sua memória, apenas uma pequena rua com seu nome, grafada de forma incorreta, escondida em um distante bairro da capital do Paraná. A cidade também lhe presenteou com uma pequena sala, igualmente batizada com seu nome, instalada silenciosa no interior do Museu Paranaense, uma das mais antigas e importantes instituições museológicas do Brasil, instituição pela qual ele também dedicou boa parte de sua vida, instituição que ele também ajudou a construir, e que hoje, abriga grande parte de suas memórias, suas obras e de seu trabalho.

 

Mesmo assim, seu túmulo no cemitério do bairro da Água Verde em Curitiba, por muitos e muitos anos, não possuía e não apresentava nenhuma placa de identificação ou referência ao seu nome. O túmulo também não registrava nem o nome de sua irmã, sua eterna companheira de viagens, Karla Kozáková, falecida em novembro de 1960 após contrair malária em uma das muitas viagens de aventuras pelo norte do Brasil feitas na companhia de seu irmão.

 

Karla e Vladimir estão sepultados neste túmulo que por anos ficou esquecido, mas que nos dias de hoje, apresenta uma pequena placa de identificação gravada em bronze com o nome dos dois irmãos que ali estão. Uma singela homenagem instalada em nome do Museu Paranaense, mas que na verdade, foi colocada ali graças aos esforços pessoais e a dedicação de Renato Carneiro (ex-diretor do Museu Paranaense) e da antropóloga Fernanda Maranhão, coautora desta obra e pesquisadora da vida e do acervo de Vladimir Kozák.

 

Quanto a mim. Eu me mudei para Curitiba ainda garoto, justamente no dia 3 de janeiro de 1979. Dia exato da morte de Vladimir Kozák. Eu fui morar coincidentemente no bairro da Água Verde a poucos metros do cemitério da Água Verde, local onde hoje ele está sepultado. Nunca o conheci pessoalmente e nem soube de sua existência até o início dos anos 2000, quando descobri suas obras e sua incrível história. No entanto, mesmo sem nunca ter tido a chance de conhecê-lo pessoalmente, de todas as pessoas que nunca conheci, ele é sem dúvida o desconhecido que mais conheço, e por isso, vou contar para vocês a história daquele que considero como sendo um dos meus melhores amigos.

 

Um tcheco que descobriu o Brasil, e que acima de tudo, amou a natureza, respeitou e entendeu a tradição e a cultura dos povos indígenas de um país distante. Alguém que respeitou aqueles que eram diferentes de sua cultura e de sua origem. Alguém que sempre demonstrou empatia pelo mundo. Respeitou todos os seres vivos do mundo. Meu querido e eterno amigo desconhecido, o grande amigo, Vladimir Kozák.

 

"Karla e Vladimir estão sepultados neste túmulo que por anos ficou esquecido, mas que nos dias de hoje, apresenta uma pequena placa de identificação gravada em bronze com o nome dos dois irmãos que ali estão."

 

 

Ao lado, imagem do tumulo de kozák antes da instalação da placa. Abaixo vista geral do Cemitério da Àgua Verde.

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Fotos: Marcelo Miguel

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