Capítulo XII

De Carmem Miranda aos Kayapó

Por Fernanda Maranhão

No dia 5 de agosto de 1955, o Brasil e o mundo perdiam uma de suas maiores estrelas: Carmem Miranda. Portuguesa de nascimento e brasileira de coração, vivendo entre o Brasil e os Estados Unidos, Carmem fez uma carreira internacional entre os anos de 1930 à 1950. Cantora, dançarina e atriz de musicais, precursora do movimento tropicalista, nossa “Brazilian Bombshell” fez sucesso em diversos musicais na Broadway e carreira na indústria americana de cinema em hollywood, levando para o mundo a música e o ritmo tropical do Brasil, América Latina e Caribe.

 

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Carmem Miranda, aos 46 anos, faleceu em sua casa em Beverly Hills, na Califórnia. Seu corpo transladado dos Estados Unidos chegou ao Brasil alguns dias depois, em 12 de agosto. Naquele sábado à tarde, o trânsito do Rio de Janeiro parou para dar passagem ao cortejo fúnebre. Meio milhão de pessoas acompanharam o cortejo a pé, da Câmara Municipal até o cemitério São João Batista, cantando um dos seus maiores sucessos: “Taí”.

 

Capital do Brasil até 1960, o Rio de Janeiro nunca mais veria uma manifestação popular daquelas proporções. Da janela da pensão da senhora Alice Bruno, na rua Oswaldo Cruz 133, no bairro do Flamengo, Vladimir Kozák muito apreensivo, acompanhava o cortejo fúnebre de Carmem Miranda. “Será que haveria mais um feriado na segunda-feira? Muito provavelmente...”

 

Kozák chegara ao Rio de Janeiro no dia primeiro de agosto e desde então empenhava-se para conseguir as autorizações oficiais e o transporte para visitar uma aldeia dos Kuben-Krân-Krên, no sudeste do estado do Pará.

 

“Aqui nada muda. Nunca consegui obter uma passagem, sem contar com círculos de amizades nos meios políticos, que decidiam sobre a disponibilidade de vagas nos aviões oficiais, e nós éramos dois - Karla e eu. Não havia maneira de entrar nos aviões do Correio Aéreo Nacional – CAN, todos os lugares já haviam sido reservados com muito tempo de antecedência (KOZAK, 1955:84 – caderneta de campo).

 

Apesar de ter falado com o general Francisco Borges Fortes, Kozák conseguira gratuidade em apenas alguns trechos da viagem. Pagou o trecho Rio – São Paulo – Goiânia. De Goiânia a Nova Xavantina (MT) viajou pela CAN (Correio Aéreo Nacional). Em Nova Xavantina comprou passagens da Cruzeiro do Sul com destino a Conceição do Araguaia (PA). Lá finalmente conseguiu a última carona que precisava. Após três semanas desde que saíra de Curitiba, Kozák conseguiu chegar à aldeia Krinraity dos Kuben-Krân-Krên, distante cerca de 2.500 Km de Curitiba.

 

 

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Imagens produzidas por Vladimir kozák pertencentes ao acervo do Museu Paranaense / SEEC - Governo do Estado do Paraná

 

Esta era a segunda viagem de Kozák aos Kayapó do subgrupo Kuben-Krân-Krên, falantes da língua Kayapó, pertencente à família linguística Jê. A primeira viagem aos Kuben-Krân-Krên, foi realizada no ano anterior em agosto de 1954, quando coincidentemente também faleceu o Presidente do Brasil Getúlio Vargas. A aldeia Krinraity localizava-se próxima a Cachoeira da Fumaça, no sudeste do Pará e era administrada pelo Posto Indígena Nilo Peçanha. Atualmente esta região faz parte da Terra Indígena Kayapó, homologada em 1981.

 

Quando Kozák chegou, a aldeia estava praticamente vazia, as mulheres estavam há alguns dias na mata, na outra margem do Riozinho, coletando castanhas-do-pará. Kozák foi para o Riozinho com sua câmera fotográfica e a filmadora, esperando o momento em que as mulheres cruzariam o rio com suas cestas presas a cabeça. O Riozinho é afluente do Rio do Fresco, que por sua vez é afluente da margem esquerda do Baixo Rio Xingu.

 

Enquanto esperava, sentou-se na margem do rio e deixou seus pés descansarem na água gelada, olhava para alguns indígenas que se banhavam no local. Aos 58 anos, Kozák sentia uma imensa paz sempre que saía do burburinho das cidades e refugiava-se entre seus amigos indígenas. Sentia-se em casa. Apesar dos custos altos, e de todo empenho e tempo dispendido com a burocracia, preparação e logística, suas expedições ao Brasil profundo certamente foram as principais realizações da sua vida, tanto como profissional, quanto como ser humano.

 

“Foi uma visão esplêndida ver o grupo descansando e tomando banho. Depois de um tempo, alguns deles subiram a encosta, crianças e cachorros vieram primeiro. As mulheres estavam tremendamente, carregadas de cestos pesados, cheios de castanhas-do-pará e bananas, traziam as crianças presas as costas ou penduradas na frente dos cintos.” (KOZAK,1955:17).

 

No dia seguinte os homens que estavam há dias na floresta caçando retornaram à aldeia. As mulheres por sua vez iam e voltavam da mata trazendo mandioca, folhas de bananeira e pedras que seriam utilizadas no preparo do beiju.

 

Todos estavam se preparando para o Bémp Kororoti, cerimônia que celebra a puberdade dos meninos através da confirmação dos nomes recebidos no nascimento. Kozák relata que há muitos anos esse ritual não era realizado naquela aldeia e que havia todo um clima de festa na atmosfera. Seis adolescentes teriam seus nomes confirmados e mudariam de status social naquele ano: Apereti, Katembori, Béki, Kaktira, Tune, Kubeniti. Em seu diário, Kozák descreve toda sequência deste ritual, em sua caderneta de campo de 1955.

 

“De manhã os rapazes começaram a cantar na Casa dos Homens. Em seguida saíram e durante uma hora cantaram, batendo os pés no chão e cruzando o pátio da aldeia diversas vezes. Na sequência as mulheres juntaram-se aos homens, dançando com eles. Depois de um tempo todos voltaram para suas casas. Dois pajés começaram a correr cruzando o pátio da aldeia e percorrendo as casas dos seis adolescentes”.

 

“Na manhã seguinte um grupo de homens mais velhos, liderados pelo chefe Okét, organizados em uma longa fila iniciaram a procissão, cruzando o pátio da aldeia em movimento de zig zag, entre as casas dos seis jovens adolescentes, indo e vindo e cantando. Eles pararam abruptamente e os jovens iniciaram a sua performance. Dois grupos formaram duas filas, dançando frente a frente”.

 

“Ao meio-dia outros dois homens, começaram a caminhar e cantar com o grupo de homens e adolescentes, na Casa dos Homens. A pisada no chão era muito forte e a casa balançava enquanto os dançarinos batiam nas paredes. Em seguida, todos saíram correndo e espalharam-se. Os dois homens começaram a caminhar calmamente ao longo do pátio da aldeia, cantando com uma voz chorosa. Os dois homens estavam adornados com capas de folhas de buriti e penas de araras, seguidos por longas folhas de buriti presas ao pulso em seus braceletes. A caminhada e o canto dos dois parecia interminável, continuando ao longo da noite. Enquanto isso, na Casa dos Homens, ouvia-se a agitação e grupos cantando e dançando”.

 

“No centro da aldeia, havia um abrigo de folhas de palmeiras onde os homens exaustos dormiam e alimentavam-se, com as comidas que as mulheres traziam para eles. A noite os abrigos eram desmontados, e os homens, após as performances sentavam-se permanecendo em silêncio. Todas as noites eles me convidavam para sentar-me com eles, e eu aproveitava para distribuir algumas lâminas de barbear, as quais eles recebiam com grande satisfação”.

 

“De vez em quando, alguns homens iam para uma clareira na mata, onde adornavam-se, depilando suas cabeças e pintando suas faces. Muitos acabavam dormindo ali mesmo.”

 

“Havia mais dança a noite, primeiro um grupo de homens, e mais tarde quando ficava muito escuro, homens e mulheres cantavam juntos. Os cantos continuavam ao longo da noite.”

 

Na manhã seguinte ao nascer do sol, pedras foram amontoadas sobre pedaços de madeira em frente a cada uma das casas dos seis jovens adolescentes que celebravam sua mudança social. Algumas outras famílias também colaboraram, preparando em frente a suas casas, fogueiras e pedras quentes para assar o grande beiju.

 

“Enquanto as pedras esquentavam, as mulheres ajudavam e preparavam os ingredientes para o beiju. Primeiro, folhas de bananeira e outras similares eram espalhadas no chão em forma de estrela. A mandioca ralada era espalhada sobre as folhas no formato de um grande bolo com 70 cm de diâmetro. Em cima da camada de mandioca as cozinheiras colocaram pedaços de carne e de peixe e por cima outra camada de mandioca ralada. Novamente outra camada de carnes e outra camada de mandioca. Depois disso, as grandes folhas de bananeira eram colocadas sobre o bolo formando um grande pacote, o qual era carregado e colocado sobre o fogo. Cada grupo em frente a cada uma das casas dos adolescentes, preparava ao menos 4 grandes pacotes. Cada pacote de bolo de carne levava uma hora para ser assado.

 

“Além do trabalho duro de preparar os grandes beijus, as mulheres tinham que encontrar tempo para pintar a si mesmas e aos seus filhos. A pintura das crianças era muito elaborada, com um desenho complexo, exigindo muita paciência. As crianças tinham que ser pintadas enquanto estavam adormecidas, de outra forma, não ficariam quietas até o desenho ficar pronto. Todo o desenho era feito com tinta preta aveludada, obtida com a mistura do carvão com a fruta do jenipapo. Depois do primeiro banho a pintura ficava com um tom azulado fosco. Depois de 4 ou 6 dias a pintura desaparecia completamente”.

 

“Como a pintura era aplicada a uma grande área do corpo, a execução era feita em etapas, dependendo do sono da criança. Assim que a criança acordava o processo da pintura era interrompido. Via-se com frequência crianças correndo e brincando, com apenas uma parte do corpo pintada. A maioria dos desenhos das pinturas eram linhas retas, as artistas mais hábeis faziam desenhos geométricos, imitando tartarugas ou linhas em zig zag.  Os desenhos completos cobriam todo o corpo, pernas e braços, e a face era decorada somente nas bochechas, enquanto a cabeça era toda depilada e duas listas em forma de um V aberto era pintado na posição invertida, com um verniz preto. No topo do V invertido havia um pequeno ornamento quadrado pintado de vermelho. A pintura dava as mulheres muita satisfação, sendo praticada com grande frequência e cuidado. Em dias normais na vida da aldeia, as mulheres pintam seus filhos todo o tempo, e não somente seus próprios filhos, mas também pintam meninas crescidas, a exceção dos meninos. A pintura dos meninos tem limitações no design e na faixa etária. Depois dos 8 anos, os meninos não têm mais o seu corpo pintado, à exceção da pintura nas bochechas.” (KOZAK, 1955:41-42)

 

“No mesmo dia ao pôr do sol, apareceu o primeiro Kuruá-pú, um grande cocar feito com taquara, uma espécie de bambú flexível. Este era o primeiro belo ornamento utilizado no festival (p.42). Cada haste de taquara tinha em sua extremidade uma pena de arara vermelha, que no conjunto formava uma grande auréola. As coroas eram penduradas uma a uma em frente das casas dos adolescentes, cuja vida estava sendo celebrada. As coroas tinham um tamanho considerável, contendo a maior delas mais de 200 penas de arara. Este ornamento era espetacular em tamanho, forma e cor, e certamente, muitas araras tiveram que ser mortas para confeccionar um Kurua-pú. Era necessário de 20 a 30 aves para cada adorno de tamanho similar. Havia 7 kuruapú pendurados nos postes das casas.

 

“Ao meio-dia, havia um silêncio na aldeia, como se todos estivessem fazendo a siesta, mas era apenas um silêncio aparente, havia muitas atividades nas sombras e no frescor das casas. Na casa do chefe OKÉT, concentrava-se as atividades de preparação e ornamentação dos meninos celebrados e dançarinos. A casa estava cheia com os performers e seus auxiliares. Daqui sairia a procissão festiva e os dançarinos” (KOZÁK, 1955 :43)

 

Os meninos homenageados, tem seus cabelos raspados e são ricamente adornados para desfilarem no pátio da aldeia. Carregam nas costas uma grande coroa confeccionada com bambus e penas de arara. Na cabeça são fixados capacetes de cera de abelha denominados Kutop, que sustentam o adorno plumário àkpari por meio de uma haste. Este conjunto de adornos representam o universo Kayapó, fazendo referência a um tempo mítico em que este povo vivia no céu, e uma parte dele teria descido para a Terra por uma corda (MARANHÃO, 2014).

 

“Contam os Kayapó que, nos tempos antigos, viviam no Céu. Lá havia muita fartura, muita comida e muita caça. Certo dia um guerreiro descobriu na mata um buraco de tatu e começou a cavar, querendo encontrá-lo. No outro dia, continuou cavando e quando avistou o tatu-gigante, cavou com mais afinco até que furou a abóboda celeste. O tatu despencou. O velho guerreiro viu a terra de cima, viu campos imensos com grandes rios e pequenas florestas de buriti. Voltou para a aldeia, contou a todos que tinha cavado um buraco no Céu e descreveu a Terra. Todos os índios se juntaram e decidiram descer. Desceram por uma corda presa a um pau. Alguns tiveram medo de descer e permaneceram no Céu. Daqui da Terra se perceber no firmamento as fogueiras que eles acendem à noite: são estrelas”. (Giannini, 2011- Mito Kayapó)

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Imagem pertencentes ao acervo do Museu Paranaense / SEEC - Governo do Estado do Paraná

 

“O pátio da aldeia havia sido varrido e um grande círculo foi desenhado no chão. Quando o calor arrefeceu por volta das três horas da tarde, o grupo saiu da casa do chefe e alinhou-se em frente da casa. Primeiro os meninos, já com as coroas fixadas as costas, enquanto em suas cabeças era montado uma espécie de capacete feito com cera de abelha, pintado nas cores verde e vermelho. O capacete de cera era o suporte de um outro ornamento de cabeça, o qual era fixado na cera. Toda a ornamentação era muito bonita. Os corpos e faces marrons pintados com as cores vermelho, verde e preto, além da coroa, transformavam os adornos em um verdadeiro arco-íris, tornando o show espetacular. Junto aos meninos alinhados, estavam seus pais e parentes próximos. Ao final houve uma procissão silenciosa deles. Os dançarinos que iriam apresentar a dança da arara, também saíram e entraram no círculo que estava marcado no chão, posicionando-se em fila. Havia também um grupo de três formado por um homem, uma mulher e um jovem. Eles estavam muito interessantes, com seus make up (adornos), representando araras, tendo os corpos coberto com pequenas penas de pássaros amarelas e verdes. Seus rostos estavam pintados da mesma forma que os meninos, os quais tinham penas de papagaios coladas ao corpo”.

 

“Agora a principal performance seria apresentada. Os meninos com os pais alinhados aos pares, os meninos maiores primeiro, depois os menores e no final os pajés da tribo fechando a procissão.”

 

“A procissão começa a cruzar a aldeia repetindo as coreografias anteriores. Enquanto isso, o grupo dos dançarinos representando araras, começaram um tipo de dança de passos curtos. Com os braços abertos, emitiam sons similares ao choro da arara: Kri-Kri-Kri-Kri-, Kra-Kra-Kra-Kra, Kri-Kri-Kri-Kri-, Kra-Kra-Kra-Kra. Em seguida, os dançarinos fizeram uma pequena corrida, percorrendo somente metade do círculo.” “Esta dança continuou repetidamente, até que três dançarinos araras começaram a gritar e a correr na metade do círculo e pararam vocalizando o típico choro: Kri-Kri- Kri-Kri-, Kra-Kra-Kra-Kra, Kri-Kri- Kri-Kri-, Kra-Kra-Kra-Kra. “

 

“Enquanto os dançarinos estavam correndo ao redor do círculo e imitando as araras um outro grupo em procissão continuava correndo no pátio da aldeia, passando próximo ao grupo de dançarinos que cantavam.” “Toda vez que o grupo alcançava a casa de um dos adolescentes celebrados, o grupo parava emitia um forte grito e descansava por um tempo, então eles começavam a caminhar novamente.”

 

“A procissão e a dança chegavam ao fim, e o sol estava se pondo enquanto os indígenas ainda estavam caminhando e cantando sob a luz vermelha do poente.” Com o último raio de sol eu conclui as derradeiras cenas do festival, que provavelmente não serão mais repetidas assim como a grande tribo Kuben-Krân-Krên está com o fim próximo. Os padres atualmente distribuem entre os indígenas calças, camisas e casacos, velhos feltros e chapéus. Maus hábitos estão sendo transmitidos para os Kayapó Gorotire, que foram totalmente influenciados pelos brancos por décadas. E então não havia mais o que esperar, a exceção dos Kayapó Kuben-Krân-Krên, que iriam perder completamente seu estilo de vida, o qual eles perpetuam há milhares de anos, defendendo suas crenças e o direito a viver seu próprio caminho".

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Imagens pertencentes ao acervo do Museu Paranaense / SEEC - Governo do Estado do Paraná

 

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