Atualizado em 06/12/2024
Por Marcelo Miguel
Ele viu a neve branca caindo em seu jardim. Por uns instantes chegou a pensar que estava em Bystřice pod Hostýnem, sua cidade natal e terra de sua infância. Terra de muitas lembranças. Mas essa neve que caia lá fora, era uma neve que pintou a cidade de Curitiba, de um branco poucas vezes visto.
A neve que parecia não ter fim, não caia na cidade do Paraná desde 1928.
Naquele 17 de julho de 1975 ela veio e veio forte, veio de um jeito que ele nunca havia visto no Brasil. Kozák então olhou pela janela e viu a rua de sua casa completamente branca, tomada pela neve. Então ele se lembrou de sua infância e de sua família. Lembrou dos tempos dos bonecos de neve e das brincadeiras nas ruas geladas no inverno da Morávia. Esta seria a última vez que ele contemplaria a paisagem branca e a neve caindo.
Ao olhar novamente pela janela e ver a cortina balançando ao vento, Kozák se lembrou de sua primeira obra de arte, feita ainda quando criança, pouco antes de um gelado natal de 1906. Ele havia montado um papai-noel com cabeças de cebola e pendurado na janela de sua casa em Bystřice. Na ocasião, ele mal havia completado dez anos de idade e aquele seria um dos poucos enfeites da sua casa naquele ano.
Família de Vladimir kozák
Imagem pertencentes ao acervo do Museu Paranaense / SEEC - Governo do Estado do Paraná
A pequena família Kozák se mantinha sem muito luxo e até com certa dificuldade financeira, mas durante muitos anos a família se manteve unida e feliz.
Nos seus anos de juventude e em seus primeiros anos no Brasil, Kozák sempre procurou registrar regularmente quase todas as suas impressões e comentários sobre o mundo e suas experiências pessoais, escrevendo tudo nas páginas de seu velho e surrado diário. Muitas de suas opiniões e histórias também ficaram gravadas em centenas de cartas e correspondências trocadas com compatriotas e amigos, uma vez que com a distância, as cartas foram sempre sua melhor forma de comunicação e contato, tanto com os amigos do velho continente como também com aqueles novos que ele conhecera nesse imenso Brasil.
Com o passar do tempo, o Filho de Frantisek Kozák e Adolfina Stiborová, foi abandonando seu velho companheiro de anotações e o hábito de escrever foi ficando cada vez mais para trás, mas o registro de suas impressões sobre o mundo, foi apenas mudando de forma, deixando as páginas do diário e passando a ocupar cada vez mais os seus desenhos, suas telas, as fotografias e os filmes que ele produzia religiosamente desde que chegou ao Brasil. Aliás, grande parte de seus filmes jamais foram finalizados, mesmo assim, seu vasto acervo é um grande legado e um riquíssimo registro etnográfico, artístico e histórico do Brasil.
Conhecer sua obra e seus registros é sem dúvida nenhuma a melhor forma de conhecer a alma de Vladimir Kozák e conhecer também seus sonhos e desejos mais íntimos. A melhor maneira de ouvir as palavras que nunca foram ditas diretamente por ele, mas que foram ditas para o mundo através do seu gentil olhar. Por isso, aprendi a dialogar com ele. Logicamente, eu muito mais ouvi do que falei durante nossas intermináveis conversas. Mas de imediato percebi que nas suas obras e nas suas anotações havia muitas coisas para se escutar e aprender.
Trechos do diário de Vladimir Kozák:
“Na cidade de Bystřice Pod Hostýnem, na casa nº 16 em frente ao passeio, nascemos Karla e eu. Meu pai, Sr Frantisek Kozák, trabalhava na casa ao lado com o senhor Pospisil em uma pequena oficina de ferragens. Nossa casa era alugada, e assim, mais tarde, nos mudamos para uma casinha melhor na Rua Lipinická 336.
Em 1913, meus pais compraram a casa onde nascemos.”
Além de seu pai e de sua mãe, a família Kozák era composta também pela sua irmã, Karla Kozáková, um ano mais velha do que Vladimir, e que, logo após a morte dos seus país e pouco antes do início da Segunda Guerra na Europa, Karla também se muda para o Brasil e vem morar com o irmão, se transformando numa grande companheira de viagens e cumplice das aventuras pelo interior do Brasil, tendo acompanhado o irmão em praticamente todas as suas grandes expedições às aldeias indígenas na região norte e centro-oeste do Brasil.
Assim como Vladimir, Karla também era uma artista e gostava de pintar. Durante o período em que viveu no Brasil, dedicou boa parte de seu tempo retratando principalmente a fauna e a flora do país.
Trechos do diário de Vladimir Kozák:
“Papai levantava-se às 5 horas da manhã e ia para a oficina todos os dias. Mamãe trabalhava em casa, mas até a meia noite encontrávamos ela pelos cantos bordando lenços e monogramas para a senhora Thonet. Muitas vezes também, víamos mamãe chorando pelos cantos da casa, principalmente quando a senhora Thonet depreciava seu trabalho no bordado para poder regatear nos pagamentos.”
Naqueles tempos, a infância difícil e pobre não era uma exclusividade da família Kozák. No início do século XX, a Europa passava por turbulências políticas e econômicas que afetava a todos.
Trechos do diário de Vladimir Kozák:
“Pela manhã, precisávamos acordar cedo e íamos direto para o campo, depois íamos para a aula, e à tarde novamente voltávamos para o campo. Era um tempo de muito trabalho e sacrifício”
“Além do bordado, minha mãe, Dona Adolfina, cuidava das plantações de repolhos, batatas e beterrabas e da criação de cabras e porcos. Nós ajudávamos sempre que possível. Eu e minha irmã éramos inseparáveis. Como um mantra, mamãe nos dizia repetidas vezes ao longo de todo o dia: “Não roube o dia do senhor, faça sempre algo de bom.” - NEUKRÁDEJ PANU BOHU DEN A DELEJ NECO PEKNÉHO. - Adolfina Stiborová
Imagens pertencentes ao acervo do Museu Paranaense / SEEC - Governo do Estado do Paraná
Próximo à casa da família Kozák em Bystřice pod Hostýnem, existe um belo castelo, que hoje abriga a sede da Prefeitura da cidade. Era o castelo da família do Barão Ernest Freiher von Loudon. Por vezes, o próprio Barão frequentava a oficina do pai de Kozák, mas este era um momento temido pelo pequeno Vladimir, que sempre que possível, procurava evitar as visitas e os encontros com o Barão, e por vezes, ao perceber sua chegada, se escondia pelos cantos da casa e até debaixo da mesa.
O nobre sempre bem trajado, soltava largas baforadas de fumaça de seu inseparável cachimbo. Kozák dizia não suportar o cheiro do cachimbo, mas o que ele odiava mesmo eram as formalidades comuns nessa época: O beija-mão. Toda vez que Vladimir encontrava o Barão, quase que instintivamente, o nobre estendia a mão na direção do garoto, quase que exigindo a usual saudação. Kozák dizia que aquilo era a mesma coisa que beijar um cinzeiro ou beijar um charuto, tamanho era o cheiro de fumaça impregnada nas luvas e nas mãos do Barão.
Vladimir Kozák estudou no Colégio Francisco José I em Bystřice pod Hostýnem, mas só foi concluir os seus estudos secundários na Escola Distrital de Bystřice no ano de 1918, quando o seu país agora se chamava Tchecoslováquia, e, algum tempo depois dele já ter participado e vivido os horrores de uma Guerra Mundial. Nessa época de sua adolescência, ele já demonstrava aptidão para as artes.
Trecho do Boletim do Instituto Histórico, Geográfico, Etnográfico Paranaense // Texto: Vladimir Kozák – O Braide Pemegare dos Borôro por Edilberto Trevisan
“Cada aluno apresentaria seus desenhos em classe, sobre assunto de livre escolha. A tudo se sobrepunha a imaginação infantil. Vladimir teria ali a sua primeira lição de desenho. Ele indagava ao seu mestre: - Mas professor, vou pintar o que? - Muito fácil menino, dizia seu professor, - tire o sapato, limpe-o e faça dele o seu primeiro modelo. Qualquer objeto serve como inspiração. O que vale é a vontade de fazer bem, pois tudo tem sua beleza.”
Naquele ano o menino Vladimir apresentou mais de 120 desenhos ao seu professor, muitos deles premiados com exibição no quadro negro da sala de aula. O pequeno estudante já mostrava aptidão para ser um artista promissor e certamente ainda traria orgulho para a pequena cidade de Bystřice.
O acervo de Vladimir Kozák existente hoje no Museu Paranaense em Curitiba, no Brasil, reúne entre desenhos e pinturas a óleo quase 1.500 peças, isso sem contarmos desenhos e pinturas que estão por aí espalhadas em outras instituições ou que foram dadas ou vendidas por Kozák para amigos ou admiradores. Curiosamente, não temos notícia ou registro de que existam desenhos ou imagens feitas por Vladimir em sua cidade natal.
A última vez em que Kozák esteve em Bystřice Pod Hostýnem, foi no ano de 1935, quando saiu do Brasil para ver sua mãe que se encontrava com graves problemas de saúde, mas infelizmente, ele não conseguiu chegar a tempo de ver ou abraçar sua mãe pela última vez. O que era para ser um alegre reencontro, foi na verdade uma triste despedida.